Resenha do livro "Mozart: Sociologia de um gênio", de Norbert Elias, Editora Zahar, 1991.
O livro do sociólogo alemão traz uma análise da relação entre arte-sociedade no século XVIII. Na opinião de Elias, a música é indissoluvelmente ligada ao tipo de sociedade e à época em que ela é produzida. Sua percepção do caso do compositor busca avaliar o conflito trágico entre criatividade pessoal e uma sociedade que queria controlá-la.
Mozart nasceu em 27 de janeiro de 1756, em Salzburg, na Áustria, localizada na fronteira com o estado alemão da Baviera. Desde muito cedo demonstrou forte aptidão para a música e aos 5 anos de idade já compunha e fazia apresentações públicas. Teve uma vida curta, morreu em 5 de dezembro de 1791, aos 35 anos de vida. Ainda assim, compôs mais de 600 composições, muitas delas consideradas obras-primas, que o transformaram em um dos mais produtivos músicos da história.
O músico foi educado na tradição dos músicos artesãos da corte e buscou alcançar o status de um músico autônomo, com independência do gosto da corte. Seu sonho fracassou. Segundo Norbert Elias, o desejo de Mozart não apresentava condições de realização em uma sociedade que ainda não estava preparada para tal.
Tendo virado atração nas cortes europeias como “garoto prodígio”, ao torna-se adulto já não trazia a mesma novidade de outrora. Inconformado, sua música revelou sua posição contraditória. Isso dificultou suas relações e acumulou dívidas em seu nome. Algumas delas, o músico pagou com composições, mas foi apenas no século XIX, com a geração seguinte, de músicos como Beethoven e Wagner, que que desenvolveu-se a autonomia do trabalho musical. Com a conquista de outros espaços para apresentações e publicação e venda de partituras, tornou-se possível alcançar um público anônimo e pagante.
Os membros da sociedade de corte europeia viviam de rendas herdadas e tinham obrigações que não eram tratadas no sentido de um trabalho profissional, já que o trabalho era considerado uma característica das ordens inferiores, ou seja, dos burgueses e das massas populares. Enquanto uma classe ociosa, a aristocracia exigia um programa intenso de entretenimentos, o qual incluía óperas, concertos dos músicos empregados pela corte ou de virtuosos itinerantes. Ainda assim, na corte principesca, que era, essencialmente, o palácio do príncipe, os músicos eram tão indispensáveis, quanto os pasteleiros, cozinheiros e eram tratados igualmente como “criados de libré”. A música nessa sociedade, não tinha, em primeiro plano, a função de expressar ou evocar sentimentos individuais, mas sim, a de agradar os senhores e senhoras dessa classe dominante.
Arte de artesão e arte de artista
No século XVIII, na Alemanha, Áustria e sua capital Viena e França, as pessoas que trabalhavam com música dependiam muito de favores patronais, ficando assim atrelados ao gosto da corte e dos círculos aristocráticos. Em outras áreas como a literatura e a filosofia, onde o mercado para a publicação de livros permitia uma maior circulação das ideias, já existia certa liberdade desse padrão. Na música, ainda em fase artesanal, o padrão de gosto do patrono prevalecia na produção artística, sobrepondo e canalizando a imaginação do artista.
Mozart viveu o dilema entre sua identificação com a nobreza da corte e seu gosto e o ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha. Ele considerava a ópera, a obra musical mais prezada pela corte, com um valor da mais alta realização pessoal. Contudo, tais produções acarretavam em altos custos e ficavam vinculadas às instituições das cortes. Ele, que queria ser um artista livre, acabou por ficar fortemente ligado à essa tradição musical.
Para Elias, sua situação era peculiar e, embora fosse um subordinado, socialmente dependente dos aristocratas da corte, tinha a clara noção de seu extraordinário talento musical, o que o levava a se sentir igual, ou mesmo superior a eles. Isso era demonstrado em sua postura e linguagem, muitas vezes vistas como inapropriadas para os salões que frequentava. Comumente inventava histórias engraçadas e absurdas e tinha predileção por expressões escatológicas com intenções humorísticas. O músico gostava de se fazer de palhaço. A imagem de “bufão” foi explorada pelo cinema no filme norte-americano “Amadeus”. Sua morte precoce também gerou especulações, que nesse enredo ficcional deram voz a trama de que Mozart teria sido envenenado por Salieri, um músico de sua época.
Entre especulações românticas sobre sua morte, desde assassinato à perda da saúde por inconformismo e falta de esperanças, suas ações de revolta representaram um passo adiante na transição do artista empregado para o artista livre.
Genialidade
Ao ouvir falar de Mozart, logo encontramos expressões como “gênio inato”, que leva a crer que sua capacidade de compor era congênita, ou seja, geneticamente determinada. Não há dúvidas de que a imaginação de Mozart se expressava em padrões sonoros com espontaneidade e energia que lembram uma força natural. Contudo, é preciso avaliar este conceito romântico e idealizado, no qual a maturação do talento é considerada como um processo autônomo, que acontece no interior do indivíduo. Dessa forma, a arte é tomada como independente da existência social do indivíduo. Isso desconsiderada a trajetória pessoal do artista e suas relações com o processo social.
Mozart realmente soube fazer coisas que a maioria das pessoas não sabia. Na arte, diz-se que isso se deve ao poder da imaginação, a qual permitiu que ele se expressasse em formas musicais que foram muito além das combinações dos padrões da época. É o que podemos chamar de criatividade.
É preciso lembrar sua rígida educação musical. Ele recebeu de seu pai um treinamento tradicional bem completo. Leopold Mozart foi um músico com acentuada tendência pedagógica, que alcançou certo sucesso como regente substituto na corte de Salzburg. Todo seu desejo de realização social foi dirigido aos seus dois filhos, Maria Anna, e, especialmente à Mozart, cuja educação musical eclipsou todas as suas outras tarefas.
Por outro lado, as viagens em apresentações proporcionaram à Mozart um conhecimento mais amplo da vida musical da época. Isso, somado a sua impressionante memória musical e criatividade, resultaram em composições que fizeram avançar as estruturas vigentes nesse campo.
Como saber mais sobre o compositor
Apesar de sua curta trajetória e de não ter vivenciado seu notável sucesso, sua obra foi interpretada por um incontável número de pessoas, entre grupos de música de câmara e orquestras, ou como repertório de escolas de música no mundo todo. Suas composições foram gravadas e regravadas, nos mais diversos tipos de mídias, como LP’S, cd’s ou Laser’s disc. Hoje sua discografia está disponível para download na internet e nas plataformas de streamings. Sua casa virou museu na Áustria e sua imagem está estampada publicamente nos mais diversos materiais, de estátuas à selos e objetos decorativos. O interesse pelo músico também gerou muitos livros biográficos, virou filme e série para a televisão. Como é possível perceber, o tempo encarregou-se de relevar o papel transformador da música de Mozart, marcando seu nome na posteridade.
Há dúvidas se Mozart foi um representante musical do rococó ou do século XIX burguês, ou, ainda, se sua obra foi a última manifestação pré romântica. Para Elias “Sua imensa capacidade de sonhar em estruturas musicais estava a serviço [de seu] secreto anseio de amor e afeto”. Sua correspondência pessoal, especialmente as cartas enviadas para sua esposa Constanze, por quem sempre demonstrou intensa paixão, revelam suas inseguranças quanto a sua aparência e seus desejos de aceitação social e reconhecimento. O sucesso, visto hoje, não impediu que ele fosse enterrado em uma vala comum do cemitério de Saint Marx de Viena.
Contudo, para além das classificações, ao avaliar sua vida e obra podemos observar que a música é parte de um processo que envolve o estudo da técnica, a pesquisa e a criatividade. Tudo envolto na trajetória pessoal do artista e seus meios de expressar suas vivências sociais.
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