O Queijo e os Vermes - Carlo Ginzburg
Atualizado: 30 de nov. de 2020
Resenha de Marcos Gabriel Ruas Benedito (Acadêmico do curso de História -Unioeste)
"Temos, por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do século XVI”. (GINZBURG, C.)
A obra de Carlo Ginzburg é um prócer por dois motivos: em primeiro lugar, é o magnum exemplo da corrente historiográfica da microhistória (que com Ginzburg, passou a ganhar maior presença no campo da ciência), e em segundo lugar, possui uma narrativa atrativíssima durante a exposição dos julgamentos e visões do protagonista Menocchio, um singelo moleiro que ousou discutir em pé de igualdade com os inquisidores.
As primeiras páginas do livro dedicam-se a um argumento do autor. Aqui, Ginzburg dedica-se a explanar suas considerações acerca do que seria a microhistória, a história das mentalidades e principalmente, a história cultural. Carlo rebate autores que pressupõem um único elemento de uma dita tradição cultural como fruto homogêneo de toda uma camada popular, ignorando as especificidades por dentro da mencionada. Como exemplo demonstrativo, o autor cita o cordel, objeto de estudo de Robert Mandrou e Geneviève Bollème. Mandrou e Bollème, na visão de Ginzburg, teriam se apressado em definir o cordel como expressão livre de uma cultura popular, estereotipando então o imaginário camponês como sendo “adocicado”, “fatalista” e deveras “fantasioso”. Apoiando-se não só em estudos próprios, como também nos estudos de Bakhtin, Carlo Ginzburg então explana que a problemática muda de figura ao analisar a “cultura imposta às classes populares” e não a cultura “produzida” por tal classe. Antes, o autor cita que o historiador se sente desencorajado, não sem motivos, em estudar tais fenômenos, uma vez que grande parte da cultura popular é transmitida oralmente, com escassos registros históricos. E o que se tem de registros históricos, muitos foram escritos por autores que estudaram o tema em suas respectivas épocas, dando margem para uma delimitação visionária e uma “deformação” da tradição real.
Nem tudo é pessimista, todavia, uma vez que chegamos a um ponto crucial do argumento inicial de Ginzburg: os mundos culturais da classe dominante e subalterna não são inteiramente distintos, anuladores um do outro ou necessitados de estudos generalizantes acerca de cada um.
Portanto, temos, no argumento de Ginzburg, a clarificação do primeiro motivo do porquê da importância de sua obra: é um estudo que redefiniu as bases do pensamento da história cultural, partindo de um novo ângulo, uma nova problemática, tratando das especificidades de cada mundo, de cada classe, sem generalizar, sem oferecer um panorama macro apressado ou presunçoso. O maior exemplo do elo ligante entre classes que comprova a afirmação anterior é o Carnaval (fator também considerado por Bakhtin): a própria natureza carnavalesca (a liberdade, promiscuidade, a abundância, a felicidade, o festim dionisíaco) era um contraponto ao dogmatismo e o conservadorismo da classe dominante. Logo, podemos ver que as culturas de cada classe se interligavam, tal como o autor disse, em uma espécie de circularidade.
Clarificado o primeiro motivo, vamos ao segundo: a narrativa. Há de se começar descrevendo quem é o protagonista do estudo de Ginzburg. Domenico Scandella, apelidado de Menocchio, era um moleiro da vila de Montereale, próxima de Pordenone, na região Friuli. Casado, tinha filhos, era alfabetizado (fato que o ajudou a argumentar com grande capacidade em seus julgamentos) e era descrito por seus conterrâneos como sendo questionador. Chamava a atenção pelas suas visões religiosas únicas e que contrapunham os dogmas católicos. A figura de Menocchio se demonstra singular e interessante em sua descrição prévia. Ele era alfabetizado, característica rara e notável para quem não era da elite, contudo, não era um intelectual, um cardeal ou um acadêmico. Não detinha em suas mãos uma vasta biblioteca com centenas de livros. Não sofreu inspiração ou meramente reproduzia visões de intelectuais (Ginzburg traça diversas vezes paralelos entre o pensamento de Menocchio com o de alguns autores pagãos, de seitas como os benandanti, e de intelectuais como Dante, contudo deixa claro que existe a possibilidade de Menocchio ter entrado em contato com as ideias de tais figuras, mas não afirma certeza), mas sim tinha criado suas próprias ideias. Menocchio, portanto, difere e muito da estereotipada visão adocicada e passiva que se tinha na historiografia dos populares.
Denunciado à Inquisição por um pároco local, Menocchio teve seu primeiro julgamento em 1583. Ali, pode-se ver em detalhes diversas das visões do moleiro. Relativizou a blasfêmia, declarando que a mesma só traz malefícios ao blasfemador, descartando seus efeitos a quem a ouve (há de se lembrar que a blasfêmia era um dos mais graves crimes no processo inquisitório). Duvidou da virgindade de Maria, dizendo que uma mulher é incapaz de dar à luz e continuar virgem. Discordou da vinda divina de Jesus Cristo, dizendo que nasceu do homem e que sua morte não foi um sacrifício salvador da humanidade, qualificando, portanto, a morte de Jesus como sendo um ato de penitência como qualquer outro. Desqualificou todos os sacramentos como sendo simples peças de negócios por parte da Igreja, criticou a arrogância do clero (afirmando que tal como o próprio Diabo, o clero buscava saber mais que Deus e se equiparar a ele), a riqueza acumulado por seus membros e por fim, a própria estrutura do julgamento inquisitório, pois achava uma armadilha e uma injustiça com os mais pobres utilizar-se de uma língua incompreensível como o latim, fazendo com que os réus se confundissem facilmente. Finalmente, Menocchio demonstrou um ato de tolerância religiosa, declarando que muito embora prefira ser católico, Deus salvará a todos, mesmo que seja judeu, islão, herege ou turco. Nesta listagem, vê-se que Scandella era um homem com visões distintas grandemente dos dogmas e práticas da Igreja Católica, com pensamentos minoritários se considerarmos a sua época. Importante notar que, Menocchio não atingiu alto grau de imaginário próprio sozinho: ele possuía alguns livros (a maioria por empréstimo), como por exemplo Il fioretto della Bibbia (uma tradução de um compilado de crônicas catalãs medievais), Il Lucendario de santi (uma tradução italiana da Legenda Áurea), Zampollo (um livro cuja descrição do Paraíso se assemelha a de Menocchio), o Decameron de Bocaccio, dentre outros. Todavia, o moleiro não simplesmente reproduziu fielmente os pensamentos dos livros, como dito anteriormente, mas sim os interpretou a sua maneira. Inclusive, um livro não identificado possuído por Menocchio é destacado como sendo uma possível tradução italiana do Alcorão, o que pode ter auxiliado Domenico em sua visão tolerante.
A eminente parcela do pensamento de Menocchio, está, porém, em sua visão a respeito da cosmogonia, que era completamente única. Para ele, tudo o que existia anteriormente era o caos, isto é, os quatro elementos clássicos misturados em um só, formando uma grande massa, tal como o queijo é formado do leite, com vermes então aparecendo nesta grande massa, sendo os anjos. A majestade divina (que Menocchio deixa implícito não ser o próprio Deus) decretou que um dentre os anjos, que seria Deus, seria o lorde comandante com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. Lúcifer, por querer se equiparar ao poder supremo, foi então expulso juntamente com seus simpatizantes pela sua arrogância. Deus, então, criou Adão, Eva e a humanidade para preencherem o lugar deixado pelos anjos caídos. E, quando a multitude não seguiu os comandos de Deus, ele então enviou seu filho, Jesus, que foi então crucificado.
Tamanha criatividade para imaginar uma visão cosmogônica tão detalhada é o principal artifício que prende também um leitor mais casual à obra, uma vez que sem sombra de dúvidas levanta curiosidade sobre como um moleiro alfabetizado, que tinha lido alguns livros apócrifos e traduções de outros livros distantes, chegou a tal ponto. Ler o julgamento de Menocchio não é simplesmente um ato de estudo, mas também um ato literato e de grande apetrecho narrativo. Quanto ao destino de Menocchio, uma nova série de questionamentos por parte dos inquisidores o levou a se contradizer diversas vezes, denunciando ainda mais sua discordância profunda em relação aos preceitos dogmáticos (por mais que Menocchio a princípio tenha declarado que seus pensamentos vieram por “intervenção diabólica”), acabou por tê-lo condenado à prisão no ano seguinte (1584), ainda que Scandella tenha escrito uma carta renegando seu pensamento. Após passar vinte meses em cárcere, uma intervenção de seu primogênito resultou em sua soltura, mas ainda assim condenado em prisão domiciliar, a carregar um símbolo de uma cruz carbonizada como aviso de seus crimes em suas roupas e a não sair de Montereale (parte que depois foi flexibilizada, desde que com a autorização de uma autoridade local). Contudo, a natureza questionadora de Menocchio (aliada a seu desejo de recontar seus pensamentos a príncipes, nobres e reis) o levaram a se isolar da comunidade em seu retorno e a retomar suas falas divergentes das da Igreja. A perda gradual de sua família (a esposa e o primogênito morreram, e sua filha, Giovanna, já havia se casado anos antes, juntamente com a deixa de seus outros filhos) também o afetou, assim como a marca da cruz em sua roupa o deixou estigmatizado por quem o via. Finalmente, em 1598, um forasteiro, abismado com os questionamentos de Menocchio, o denunciou novamente à Inquisição. Em seu segundo julgamento, Menocchio admitiu com maior firmeza ele ter sido o próprio autor de suas ideias, embora tenha adotado uma postura mais defensiva e pedindo clemência. De nada adiantou, e Domenico Scandella foi considerado um heresiarca, sendo executado por carbonização em 1599.
Em suas palavras finais, Ginzburg destaca que ao mesmo tempo em que Menocchio era julgado pela segunda vez, Giordano Bruno também era julgado em Roma. Logo, podemos ver uma vez mais a comprovação do autor da circularidade cultural recíproca, afinal, tanto o mundo popular e o intelectual se equipararam em uma questão comum, não sendo completamente distintos um do outro. Pode-se inferir então, que estudos micro como o da análise do caso de Menocchio são de grande valia para a História, uma vez que se pode analisar de uma forma muito mais aprofundada e abrangente as relações sociais em uma época, as especificidades de cada cultura, e, principalmente, a função que cada uma dessas particularidades exerceu em seu tempo, para que assim exista uma melhor compreensão do processo histórico.